quinta-feira, 27 de setembro de 2007

"La señora del Paraguas Rojo!"


"Las aventuras de un pinche en Barcelona" (2)

Se existe alguma razão para um pinche não desistir, nem entrar em parafuso e promover uma tragédia na cozinha onde trabalha desesperadamente, essa razão deve ser o dia de folga. Pelo menos era essa a minha razão. No dia de folga, que na verdade começa na noite anterior quando aquele carrancudo ajudante de cozinha dá lugar a um sujeito alegre e descontraído, tudo pode.

Ao contrário da ditadura imposta pelos Chefs de cozinha, no dia de folga quem manda é o pinche. Mas para aproveitar a tão esperada e saborosa folga, obviamente o camarada tem que estar trabalhando. Até porque desempregado vive de folga. Decerto uma folga azeda, com gosto de comida estragada. Mas se não está trabalhando, está de folga.

Então, dá-lhe a procurar emprego. Aí é sempre a mesma coisa: ônibus, metrô, trem, pé no chão... Muitos e muitos quilômetros depois, o pinche invariavelmente acaba encontrando sua nova casa, com novos hábitos e desafios. Novos? Que nada! O pau come do mesmo jeito em qualquer restaurante no qual ele trabalhe.

Pois foi numa dessas buscas por trabalho que o ex-pinche aqui passou por uma saia-justa daquelas. Foi mais ou menos assim: antes de mudar para Barcelona, li tudo o que podia sobre a catalunha e os catalães. Deu para o gasto e comecei com o pé direito minha relação com esse pedaço do mundo. "Nossa, como você sabe disso."; "Incrível essa sua paixão por um lugar e um povo desconhecido."; "Você já deve ter passado por aqui em outras vidas(!)".

É, o pessoal gostava e se impressionava com minhas opiniões sobre eles e minha desenvoltura sempre que assuntos como culinária, história e a Nova Espanha (lembre-se, estamos em 1989) eram postos na mesa. De tudo que li, o que mais gostei foi um livrinho de bolso, um guia turístico de Barcelona, que de pequeno só tinha mesmo o formato. Era um gigante em informações que devorei nas semanas anteriores e durante todo o vôo naquele MD-11 da Vasp que me levou do Rio a Barcelona. Chamava-se Petit Guia de Barcelona. Em cada página uma dica precisa. Cento e cinqüenta páginas, cento e cinqüenta dicas.

O Petit Guia era tão especial e inusitado que, em 1990, o então prefeito de Barcelona Pasqual Maragall (um sujeito bacana, quatro vezes eleito prefeito da cidade e que a preparou para as Olimpíadas de 92) o elevou à categoria de melhor guia turístico já escrito sobre Barcelona. E sem uma única foto sequer! Só textos e pequenos desenhos em nanquim. Pena que o esqueci no MD-11.

O autor do guia, Francesc Petit, é um dos grandes nomes da propaganda brasileira. Ele é o "P" da talentosa e tradicional agência brasileira DPZ. Além do "P" ainda tem o "D" de Duailibi e o "Z" de Zaragoza. Ambos são sócios do Petit e, juntos, transformaram para melhor a propaganda brasileira a partir da década de 60. Petit é espanhol, Catalão de Barcelona, é profundo conhecedor de inúmeros assuntos e tem a prosa pra lá de envolvente. O fato é que o homem tem milhares de histórias encantadoras para contar. E quando o assunto é Barcelona, então, ele "é o cara".

E o pinche com isso? Você já vai entender. Enquanto seguia pelas ruas de Barcelona procurando emprego, a recorrente lembrança de uma dica do Petit Guia parecia querer me convencer de que eu merecia algum tipo de punição por ter esquecido o guia no avião. Afinal, eu me encantara com a dica de um bar e restaurante especial: El Paraigua ("o guarda-chuva" em catalão). Acontece que não tinha a menor idéia do seu endereço. Não anotei nem memorizei e ainda por cima estava sem a assessoria do meu pequeno guia. Então seria na sorte. E não é que achei! Na fachada, o nome adaptado e traduzido para o espanhol: El Paráguas Rojo ("o guarda-chuva vermelho").

Petit contava que o Paraigua é uma edificação centenária, construída em 1564 para abrigar um colégio de freiras. Alguns séculos depois os novos proprietários transformaram o local em um bar e fizeram da sua decoração, arquitetura e cardápio pontos fortes de uma casa de tons modernistas e renascentistas que atrai a freqüência de intelectuais e artistas. E mais: ele é um dos poucos bares da cidade, por incrível que possa parecer, que ficam abertos até as 3 da manhã oferecendo um mix de produtos de alto padrão. Então entrei.

Apesar de ainda estar claro na rua, o bar estava bem escuro. Apenas seis pequenas luminárias na forma de sombrinhas femininas colocadas sobre o enorme balcão de madeira de lei e um lustre de aspecto vitoriano iluminavam o local. Não tinha ninguém no bar. Provavelmente pelo horário tão prematuro para uma happy hour. Entusiasmado com o golpe de sorte, sentei no banquinho e pedi a fantástica cerveja vermelha Voll Damm ali mesmo no balcão. Logo no primeiro gole comecei a notar algo estranho.

O cheiro forte de estofados e tapetes pesados era uma mistura de fumaça de cigarro, mofo, poeira e perfumes baratos. O barman, com seu fino bigode, gravata borboleta e suspensórios, parecia um personagem saído daquelas histórias de cabarés franceses itinerantes que faziam a alegria da rapazeada no início do século XIX. E aquele sujeito gigante ali na saída do bar? Leão-de-chácara em um local tão descolado?

No terceiro gole percebi, já com a retina adaptada à pouca luminosidade, a total ausência de charme do local e uma misteriosa e feia escada em caracol levando ao andar de cima. Tudo bem, gosto é gosto e o Petit pode ter o dele assim meio peculiar... Mas e a construção? De centenária não tinha nada. Tava tudo errado.

De repente, surge ao meu lado, vinda pela escada em caracol, uma senhora loura, sobre saltos enormes e vestida apenas de espartilho e shortinho rasgado na parte de trás. Seria até uma bela visão se ela não aparentasse uns 50 anos. Ou mais! A ficha cai e fica evidente que entrei em um prostíbulo.

Enquanto tentava explicar o mal-entendido citando a dica do guia e a minha confusão entre dois nomes tão parecidos, eu driblava as investidas daquela profissional dizendo que eu era apenas um pinche em busca de emprego.

A desinibida senhora loura de espartilho, shortinho e saltos enormes afirmou que não conhecia esse tal de Petit e que não gostava de homens com aquilo petit. Baixaria! Paguei minha cerveja e saí. Ou melhor, tentei sair. Na porta, o Leão-de-Chácara me exigiu o pagamento de "consumação" mínima. A conta: 8 mil pesetas (o equivalente hoje a 50 euros)! Paguei e saí apressado. Mas ainda deu tempo de escutar, vindo lá do fundo do bar, a mulher dizendo que ela tinha uma vaga para pinche. Quem sabe em outra vida, pensei. Nunca mais esqueci aquele meu dia de folga e nem aquela señora del Paraguas Rojo. Foi mal, Petit!


sexta-feira, 21 de setembro de 2007

"¡Lléguêmo!" (Las aventuras de un pinche en Barcelona – 1)


Hola. ¿Qué tal?
– Bien, ¿y tú?
– Muy bien, gracias.
– ¿Cómo te llamas?
– Eduardo
– No, no, no... tu nombre és Pinche.
– ¿Y el nombre tuyo?
– Me llamo Cumim.
– !

Poucas conversas na minha vida foram tão esclarecedoras. Em segundos descobri que ali no Sibarit Restaurant eu não tinha nome. Tinha função. Meu interlocutor chamava-se Paco e ele não era tão antipático como pode ter parecido. Isso eu descobri algum tempo depois. Assim como eu, ele também estava na base da cadeia alimentar só que dos maitres, garçons, assistentes e ajudantes. Ser cumim é praticamente a mesma coisa que ser pinche mas com um requinte de crueldade: tem que usar gravata borboleta e avental. No salão do restaurante, ele não anota pedidos, não fala com os clientes nem os clientes se dirigem ao cumim. Apenas recolhe pratos, talheres e copos deixados para trás pelos clientes além de arrumar as mesas e cadeiras. Enfim, estávamos na mesma canoa furada. Com uma diferença: o cumim, digo Paco, queria ser bombeiro. E eu queria me divertir.

Já o Sibarit Restaurant estava nem aí para nós. Inaugurado em 1986 e com apenas três anos de vida ele já se firmava como uma referência da sofisticada nova gastronomia catalana e internacional que encantava os gourmets da cidade. Localizado até hoje na acolhedora calle Aribau, nº 65, fica distante apenas duzentos metros da Universidade de Barcelona que, desde 1882, funciona em um edifício histórico belíssimo no centro do Eixample (bairro construído na segunda metadade do século XIX e que expandiu a cidade para além dos seus limites medievais). Mas voltemos ao Sibarit.

Com apenas dez mesas, ele parecia um local de pouco trabalho. Engano meu. E do cumim. Ali a busca pela perfeição gerava um uma faena insana. E nem podia ser diferente. Suas carnes de caça como lebre e javali, seu Bife Tartar e seu Steak de peixe ao caviar de robalo exigiam absoluta atenção. Bom para os clientes que ainda podiam escolher belos vinhos de la Rioja, Ribera del Duero e Albariño para acompanhar tantas delícias. E nós, nas omeletes, risotos, peixinhos, pratos simples e "vinhos da casa". Dá para entender porque o dia de folga era tão aguardado.

Foi numa das minhas primeiras folgas que eu, o pinche, e Paco, o cumim, saímos com meu velho amigo Fernando Arenas – que aproveitava uma longa jornada turística em Barcelona. Resolvemos conhecer os arredores dessa Cidade Condal. Do passeio me lembro pouco. Fomos a uma cidadezinha que abrigava um parque ecológico muito visitado inclusive nos dias de semana (sim, porque folga de pinche e de cumim só nas segundas ou terças). O passeio teve direito a trem elegante na ida e na volta, paisagens deslumbrantes e boas comida e bebida. Lembro que o Fernando estranhou um pouco o Paco com seu jeito certinho, cabelo engomado, pisante importado e de fala exageradamente correta para alguém tão jovem.

De fato, se você parasse para observar, o camarada tinha um linguajar que não combinava. Coisas como usar "consigo" ao invés de "com você", "seguir adiante" ao invés de "vamos nessa" ou ainda "hacer el amor" ao invés de "follar". O cumim, digo Paco, tinha 21 anos mas falava como um idoso. Falava muito bem, é verdade, mas enchia a paciência com suas sistemáticas intervenções nos vocabulários alheios. Enfim, de tão pequena, a cidade deu o que tinha que dar lá pelas cinco da tarde. Tomamos duas saideiras e pegamos o trem de volta para Barça.

Nosso destino era a estação Plaza Espanya. Quando o trem começou a diminuir sua velocidade para estacionar em nossa parada levantei-me e, como se quisesse exorcisar o Cervantes que possuía a alma do meu novo amigo cumim, digo Paco, bradei com um exageradíssimo sotaque nordestino: "Lléguêmo"! Instantaneamente o Fernando começou a rir pois isso lembrava uma antiga piadinha interna da nossa turma lá no Rio de Janeiro que, de tão tola, não merece nem ser explicada a você.

Acontece que o nosso jovem Cervantes, digo cumim, digo Paco, tomou as dores por achar que Fernando ria de minha ignorância no idioma de Quixote. Enquanto um irritante sinal sonoro nos avisava que as portas fechariam a qualquer momento, nosso preocupado Paco me corrigiu: "¡Qué no, Eduardo!... El correcto és 'llegamos' o entonces 'hemos llegado". Não resisti. E com um sotaque nordestino ainda muito mais exagerado repeti minha frase com aquela pinta de quem aprendeu a lição: "OK... hêmos lléguêmos"! A gargalhada tomou conta do vagão que a essa altura já corria sobre os trilhos buscando a próxima estação.

Fomos parar de rir umas quatro estações depois. Eu e Fernando, rindo da piada certa na hora certa. E ele, provavelmente, rindo daqueles dois pobres Sanchopanças.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

"Las aventuras de un pinche en Barcelona"


Cozinha de restaurante é um dos espaços mais frenéticos que já conheci. Funciona na base do corre-corre. Geralmente decorada em aço inox e com uma infinidade de utensílios pendurados, ela é local onde tudo queima, tudo corta, tudo é intocável, tudo tem sua hora.

Na cozinha o Chef manda e a equipe obedece. Acho que até as cebolas assadas, cenouras raladas, alfaces, tomates, batatas-fritas, carnes, peixes, massas e sobremesas em geral prestam obediência a ele, o comandante. Chef é Chef porque sabe mais, é mais criativo, tem mais experiência ou, em determinadas casas de categoria duvidosa, porque não tinha ninguém melhor ou mais barato que aceitasse a missão. De qualquer forma, é o Chef que orienta o destino de todos aqueles que tentam sobreviver nesse pedacinho de Saigon que é uma cozinha de restaurante. E só os fortes sobrevivem.

Na equipe do Chef tem de tudo: cozinheiros, cozinheiros assistentes, o cara dos molhos, o cara das carnes, o das massas, os ajudantes e o pinche – infelizmente o ajudante de cozinha mais insignificante de uma casa dedicada a oferecer os prazeres da boa mesa. Não tem jeito: se é pinche, é escravo. Faz de tudo, muito e para todo mundo. Ninguém abaixo dele. Só acima. O primeiro na cadeia alimentar. Uma espécie de doador universal de sangue, suor e, muitas vezes, lágrimas. O pinche é também um receptor universal. Só que de broncas, horas extras e trabalhos sujos como limpar o chão escorregadio, limpar aquela gordurinha presa no teto e limpar peixes (as escamas são impertinentes e fazem questão de grudar no teto recém esfregado pelo pobre pinche).

É sempre assim. Quando não está descascando batatas, lavando louça ou empilhando mercadorias, o pinche está limpando, limpando, limpando. É quase uma paranóia. Mas existem jovens que até acham um mal necessário (e por isso mesmo mais suportável) ser pinche. Esses são os que apostam em um futuro brilhante pilotando fogões em casas de sucesso a partir do aprendizado adquirido no campo de batalha onde enfrentaram as chamas do filé flambado, o furor das patatas bravas, a força das tapas bascas e a resistência das ensaladillas russas. São jovens soldados rasos que sonham em chegar a coronel e ter na lapela uma condecoração na forma de estrela do Guia Michelin.

Sonhar, afinal, não paga imposto. Ainda assim, nunca fui um desses sonhadores. Até porque, quando... ops! Desculpe. Esqueci de contar: eu fui pinche! Verdade. Foi na temporada de Primavera-Verão entre os anos de 89 e 90, em Barcelona, Espanha. Foi dureza mas foi muito divertido. Rendeu algumas amizades, uma rápida e bem-vinda fluência no idioma espanhol e intimidade com o idioma catalão.


Daqueles corajosos fornos e fogões vi nascer fantásticas receitas que empanturravam o apetite dos clientes e os bolsos dos nossos patrões. Histórias deliciosas também nasceram alí no meio daquela rotina que beirava a histeria. Histórias que retratam com bom humor e descontração as aventuras de um pinche pelas cozinhas, ruas, praças e bares de Barcelona. E, seguindo sugestões postadas aqui no Relógio de Corda, algumas dessas histórias vou contar a partir de hoje na série Las aventuras de un pinche en Barcelona. Divirta-se!

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Uma noite no El Bulli – Parte 3 (final)


Após algumas taças de cava, trocamos a varanda do El Bulli pelo salão, onde o show continua. Belo, discreto e elegante, o salão abriga diversas mesas laterais, algumas poucas centrais e outras tantas em agradáveis cantinhos com paredes de pedra e confortáveis sofás. É numa dessas que ficamos.

Na parede ao lado, um quadro com uma curiosa foto dos Rolling Stones nos anos 60. Nela, presenteada a Ferran pela própria banda, os músicos estão numa grande sala vestidos alegoricamente e largados no chão em meio a dezenas de metros de panos coloridos. No meio de tudo, sem razão aparente, um cachorrinho compõe o cenário lisérgico. Na verdade, um buldogue. Por isso o presente. Afinal, El Bulli quer dizer “o buldogue”.

Voltando à mesa, o ritmo segue intenso.

Mais uma seqüência de exóticas combinações acontece diante de nós. Começa com um fantástico “airbag” de parmesão, leve como uma pluma e inacreditavelmente suave. Aparecem curiosos biscoitos de pistache com leite ácido, espumas de abacaxi e pinha, além de um alucinado bombom de tangerina, amendoim e – pasmem – curry! Mas as surpresas não param. E essa gostosa confusão cerebral promovida por Ferran Adrià vai mexendo com nossas referências.

Chega então um inesquecível fondant de framboesas com wasabi branco e vinagre também de framboesas. A seguir, uma mini-seqüência com um trio imbatível: iogurte de ostras com peixe em tempura, trufas geladas de cenoura com estragão e passas de pêssego, judión con panceta Joselito (são os “ervilhões”, duas cápsulas com recheios de uma pasta de ervilhas finas encharcadas por um creme leve e suculento). E mais, mais, mais.

Curioso. Ainda não estamos cheios.

Chegam agora merengues, risoto de cítricos, nhoque de polenta com café, açafrão e margarita, sensacionais aspargos em cinco sabores, algas marinhas, topinambour com bacalhau, arraia e até sopa de manteguinha noisette com cérebros de coelho (bem, esse eu dispensei e Larissa não deixou nem servirem).

A essa altura, começávamos a encalhar. Foi então que nosso maître fez uma parada estratégica (ah, o ritmo quem comanda é ele, e até para ir ao lavabo temos que pedir ao maître, pois os pratos chegam um após o outro e tem que ser tudo no tempo certo). Ele justifica a paradinha: “Chegou a hora do parabéns”. Na verdade, uma breve e diplomática salva de palmas dos outros clientes enquanto era montada na minha frente uma torta de papel com uma vela de verdade no topo. Eles acharam engraçado. Nós gostamos da delicadeza.

Vida que segue. Sobremesas que começam a chegar. Não creio que consigamos aproveitar tudo que ainda vem por aí. Ledo engano. Após uma delicada “lã” de avelã e algumas frutas embebidas em cerveja preta, vinhos e vinagres, nossa maratona gastronômica chega ao fim com uma seqüência de morphings que encerram com categoria essa festa de sabores, cores e texturas. Conseguimos. Agora sim, estamos satisfeitos.

Mas ainda falta um molho especial para fechar a noite: uma foto com aquele que é o principal responsável por uma verdadeira revolução na forma de pensar e produzir gastronomia no mundo atual, transformando as receitas do El Bulli numa linguagem em que a argumentação criativa é o principal ingrediente.

Somos os últimos a deixar o salão. Ferrán Adrià está se preparando para a primeira de duas entrevistas da noite (são duas da manhã!). Antes de começar, permite que façamos nossa foto a seu lado. Ao contrário de quando chegamos, agora ele se solta um pouco mais.

Em cinco minutos de conversa na cozinha, ele nos pergunta sobre o Brasil, afirma que somos o povo mais privilegiado do mundo quando o assunto é a variedade de alimentos disponível, informa que pretende estar no país em janeiro ou fevereiro e, em seguida, se despede educadamente.

Numa última frase, digo a ele que tentarei voltar em 2008. A resposta, mais uma vez lacônica, já indica a dificuldade do porvir: “Hay que intentar”! E, sorrindo, vai para o salão ao lado conceder mais uma entrevista.

A nós, restou o que já começa a se transformar em lembranças de uma noite especial: comprar um belo livro com tudo sobre a temporada de 2005 e encontrar nosso irritadiço taxista no estacionamento do El Bulli.

Sexta-feira, 8 de junho de 2007. Duas e meia da madrugada.

No sinuoso caminho de volta para o hotel, fico pensando em meus outros aniversários, no nosso filhinho que nos espera em Brasília e no poder transformador da ousadia e da criatividade. Enquanto isso, a meu lado, Larissa dispara: “Toda essa história de ‘melhor restaurante do mundo’ serviu para que a gente descobrisse que essa tal evolução da culinária ocidental é capaz de preservar a honestidade e a simplicidade que todo grande prato precisa e merece ter”. Larissa é mesmo muito especial. E acho que vou aprender a cozinhar.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Uma noite no El Bulli – Parte 2


O chef mais badalado do mundo surge para nos cumprimentar como, certamente, o faz com todos os outros convidados. É de praxe. Mais gordinho e calvo do que nos acostumamos a ver nas suas fotos de divulgação, Ferran Adrià nos dá as boas-vindas e se certifica de que somos nós os brasileiros da noite. Lacônico, despede-se dizendo que o gourmet que ele mais respeita no mundo é brasileiro. Só não quis dizer o nome do nosso conterrâneo.

Começamos bem.

Em seguida, Don Luís García nos leva para uma mesa na ampla e charmosa varanda da casa, onde alguns lugares já estão ocupados. No caminho, cumprimentamos Juli Soler, sócio de Adrià e um dos grandes responsáveis pela evolução do El Bulli. Na varanda, mesas de madeira, cadeiras confortáveis, piso e muretas de pedras diversas, além de uma ambientação perfeita em cada detalhe, indicam tratar-se de uma discreta e aconchegante casa provençal.

Dois outros casais em diferentes pontos da varanda ocupam mesas de frente para o mar. Na mesa mais bonita, um grande e barulhento grupo. Para minha inveja, todos já apreciavam as famosas entradas e snacks, acompanhados por martinis e cavas. E pareciam estar gostando. Deu água na boca.

Ficamos numa mesa mais próxima da entrada do salão principal e da cozinha. Dali era possível sentir agradáveis odores vindos lá de dentro. O que não dava nem para desconfiar era a quantidade de profissionais que passariam a nos atender.

Funciona mais ou menos assim: cada grupo formado por um maître, um sommelier, dois, três ou quatro garçons (dependendo do tamanho da mesa) e alguns ajudantes fica responsável por um grupo de mesas. Detalhe: todos poliglotas. Nosso sommelier, por exemplo, falava perfeitamente cinco idiomas (espanhol, catalão, inglês, francês e italiano). E uma das garçonetes catalanas falava japonês fluentemente!

Confesso que para nos acostumarmos com tantos rostos novos ao mesmo tempo demora um pouco. A cada instante surge um diferente. Todos impecavelmente vestidos de preto e com uma quantidade relevante de informações sobre o menu-degustação, a casa, o Ferran Adrià, a carta de vinhos. Mas ninguém diz exatamente o que iremos comer. E esse é um dos saborosos mistérios do El Bulli: o cardápio do dia é surpresa! O chef Ferran Adrià cria uma grande quantidade de pratos para a temporada de seis meses. Mas serve “apenas” entre 30 e 33 pratos por cliente. Assim, cada mesa tem uma combinação diferente –, cada menu é personalizado. Coisa de quem sabe fazer bem feito.

Na varanda (e com a noite ainda por cair), nossa jornada gastronômica começa com um welcome drink que já deixa claro do que o El Bulli é feito. Na taça, martini de melão com cinco avelãs estufadas. Para cada avelã, um gole. Inesquecível a combinação. Para acompanhar, aquela que talvez seja a mais famosa das iguarias do mestre Adrià: azeitonas verdes esféricas (na verdade, cápsulas com pele de azeitona que abrigam um líquido quase pastoso preparado à base de azeites especiais). Detalhe: elas são geladas por fora e quentes por dentro. Começa aí um festival de sabores, texturas e surpresas que só irá acabar quatro horas e meia mais tarde.

E aparece o sommelier! Com ele, nosso primeiro problema: a carta de vinhos, de tão extensa, mais parece um livro sobre a história do mundo. E que mundo! França, Itália, Espanha, Portugal, Austrália, EUA, Chile, África do Sul. Estão todos lá, numa espécie de Nações Unidas do Bom Gosto.

A carta fica para que a estudemos. Mas como harmonizar sem saber o que vamos comer? Don Miguel, o sommelier, volta com um sorriso maroto, como se já soubesse que da nossa mesa viria um pedido não de vinhos, mas de socorro. No entanto, nós surpreendemos. Para facilitar, determinamos que só tomaríamos bebidas catalãs. Afinal estamos na Catalunha, o restaurante é catalão, o chef é catalão. Pronto. Conquistamos o sommelier Don Miguel.

Ele nos explica que o menu será dividido em cinco partes: entradas e snacks diversos, “pratos” frios diversos, “pratos” quentes diversos, postres e avant-postres. Assim sendo, nos aconselha a iniciar com o espumante cava, passar para o vinho branco lá dentro do salão e, a partir dos pratos quentes, seguir com os tintos. Sempre catalães.

Ainda na varanda, a degustação começa a assumir ritmo mais intenso, quase frenético. Frutas lyosificadas surgem na forma de palitos de abacaxi leves como espuma seca. Merengues e profiteroles de beterraba e iogurte se desintegram à mais leve mordida – é preciso comê-los de um só golpe.

Três falsos chocolates salgados em barra trazem sabores conhecidos de pistache, iogurte e cassis em texturas inimagináveis. Pequenos pastéis de gorgonzola doce dão um poderoso golpe na minha tentativa de entender o que está acontecendo. Nossos sentidos se confundem. Estão absolutamente estimulados. Mas como entender que o salgado é doce, que a beterraba é branca com gosto de iogurte – como lidar com essa verdadeira estripulia que o mestre Adrià faz com nossos sentidos?

Decidimos relaxar e tentar aprender algo de novo. Até porque, a cada prato trazido à mesa nosso maître explica o que é e como deve ser comido. Sim,
pois até a ordem da ingestão dos produtos é fundamental para sua melhor apreciação.

Ah, e das trinta e poucas iguarias servidas, doze são levadas à boca sem o auxílio de talheres e a maioria dos pratos servidos na degustação são apresentados em travessas fantásticas, com design ousado e orgânico feito especialmente para o El Bulli. Faz parte do show.

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A terceira e última parte dessa história de uma noite memorável no El Buli eu posto amanhã. Até lá.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Uma noite no El Bulli – Parte 1


Quinta-feira, 7 de junho de 2007. Oito e meia da noite. Através da ampla varanda do Hotel Terraza, um sol atrevido invade nosso quarto. É noite de Corpus Christi. Lá fora, contrariando as convenções, nosso astro-rei teima em brilhar no céu azul da calma, bela e mediterrânea Praia de Roses, cerca de 135 km ao norte de Barcelona.


Eu e minha mulher, Larissa, estamos exatamente onde queríamos estar. O calor do sol que chega a nós, ainda tímido como costuma acontecer nos finais de primavera aqui pelas bandas da Catalunha, no nordeste da Espanha, é suficiente para aquecer os momentos que antecedem nosso aguardado encontro com a ousadia e a criatividade de um gênio da gastronomia mundial.

Encastelado em seu surpreendente restaurante, Ferran Adrià nos aguarda, e a todos os seus clientes desta noite, pronto para mostrar que sempre é possível reinventar e melhorar o que já é ótimo.

Fico pensando nele, lembrando suas entrevistas e sua tão taxativa quanto recorrente afirmação de que no El Bulli se faz o que ele batizou de “nouvelle-nouvelle cuisine” (e nada dessa história de cozinha molecular!). Fico pensando também no quanto foi complicado, difícil mesmo, chegar a esta noite.

Foram três anos de espera. Três anos de fila. Três anos tentando a reserva para a noite do meu aniversário. Reserva que só pode ser feita pela internet, e por um curto período, pois o restaurante tem pouco mais de 20 mesas e só funciona cinco noites por semana, durante apenas seis meses por ano! Ou seja, faltavam vagas, as listas de espera estavam sempre completas e o site do El Bulli orientando: “Tente ano que vem”. Insisti, insisti, consegui!

Fico pensando em tudo isso e me atraso!

Insistente, o telefone do quarto toca pela segunda vez em 10 minutos. São oito e quarenta. O sol segue brilhando e, lá na recepção, um ansioso taxista ameaça ir embora sozinho. Com o típico humor catalão, o homem não entende nosso “enorme” atraso de poucos minutos. Fico na dúvida se ele entende que somos nós os mais ansiosos para percorrer o trajeto combinado.

Nossa reserva no El Bulli é para as nove da noite. Distante cerca de 25 km da Praia de Roses, o restaurante está localizado no topo de um morro que delimita uma pequena enseada – a Cala Montjoi. O percurso até lá leva 30 minutos.

Precisamos vencer uma pequena serra. O desenho sinuoso, de pista estreita, com suas dezenas de curvas fechadas e sem proteção lateral, torna a pequena estrada absolutamente desafiadora para os turistas que pensam em se aventurar dirigindo. A volta, então, após vinhos, cavas e licores, torna-se um perigo brutal, com precipícios dos mais variados tamanhos logo ali ao lado.

Menos mal que o próprio El Bulli orienta a ir de táxi. E, por falar nisso, nosso irritadiço taxista é um ás do volante, uma espécie de Ayrton Senna da Praia de Roses, que domina aquelas curvas com uma tranqüilidade parecida com aquela que o nosso eterno campeão mostrava nas apertadas ruas do circuito de Mônaco. Assim, ao contrário do que pensávamos, chegamos na hora! E como prêmio por sua pilotagem, marcamos com nosso taxista o retorno para o hotel.

O estacionamento do El Bulli – um amplo espaço calçado com uma camada de fina brita e encravado entre a montanha e o mar – está vazio para um lugar tão concorrido. Estranho. São apenas dez carros. De fato, com uma estrada daquelas, talvez até sejam carros demais.

Aproveitamos para fazer fotos. Eu, ela, sempre um ou outro, como aquelas fotos dos casais que saem em lua-de-mel e as únicas fotos nas quais ambos conseguem aparecer são as batidas por garçons, barraqueiros, taxistas ou outros turistas. E o pior: nem todas com um padrão de qualidade aceitável.

Está na hora. Vamos entrar.

A brisa vinda da Cala Montjoi, com leve odor de frutos do mar, parece estar ali para dar um empurrãozinho em quem costuma ficar com aquele frio na barriga, mãos úmidas e pernas pesadas diante do desconhecido. É como se estivéssemos indo abrir aquele quarto cheio de presentes de aniversário guardados durante a festa. A surpresa é inevitável. A taquicardia também. Aí é torcer para que tenha valido a pena esperar. E valeu!

Os dois pinheiros altivos e bem podados na entrada do restaurante mais parecem dois gigantes guardiães dos segredos do El Bulli e de sua fantástica trupe de garçons, maîtres, sommeliers e cozinheiros. Logo após passar por esse verdadeiro portal da criatividade, um pequeno lance de escadas surge para nos levar ao hall de entrada da bela casa branca, repleta de toras de madeira envernizada que formam sua estrutura e assumem a responsabilidade de contar um pouco da história dessa ousada e simpática construção dos anos 50.

Finalmente, aparece o primeiro integrante da equipe. É Don Luís García. Amável e sistemático, leva-nos para conhecer a cozinha do El Bulli. Foi uma surpresa. Logo na chegada! Lá dentro nos mostra as áreas específicas de preparo dos molhos, dos doces, dos quentes e dos frios. A equipe é grande e todos vestem branco. Uma enorme cabeça de touro dourada enfeita o local, que é amplo, limpo e na cor azul. É tudo muito rápido.

De repente, ele: Ferran Adrià.

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A segunda parte dessa história de uma noite memorável no El Bulli eu posto amanhã. Até lá.

Uma noite no El Bulli

A partir de hoje, e por três dias consecutivos, postarei aqui no Relógio de Corda o curioso e saboroso relato de uma memorável noite passada por mim e minha mulher Larissa no templo mundial da chamada “cozinha experimental”, ou “cozinha de vanguarda”. Estou falando do El Bulli, do chef catalão Ferran Adrià, líder do ranking das 50 melhores casas gastronômicas do planeta, eleitas pela revista britânica Restaurant. Foram três anos na fila de espera por nossa mesa nesse fantástico restaurante ao norte de Barcelona, Espanha. Mas pode ter certeza de uma coisa: valeu muito a pena. A primeira parte, então, vem a seguir.

Mais uma primeira vez


As mãos estão suando. Não é a primeira vez que isso acontece com ele. Se repete sempre que encara uma nova primeira vez em sua vida. E foram tantas as suas primeiras vezes. Tantas durante esses tantos anos que já devia estar experiente. Ficar calmo, tomar conta da situação. Não suar as mãos (muito menos a fronte! As pessoas percebem!). Teve aquela primeira vez que foi à escola sozinho. A primeira vez que andou de montanha-russa. A primeira vez que foi ao Maracanã, à praia, ao circo. A primeira vez que viu a futura primeira namorada. A primeira vez que foi trabalhar com a marmita na mochila, o coração cheio de esperanças e a cabeça lotada de conselhos de mãe: "faça o seu melhor, respeite os mais velhos, não permita que te humilhem, volte em segurança para casa". Faculdade, viagens, mulheres, brigas, desculpas... Tantas foram as primeiras vezes que não dá para entender por que suas mãos suam e seus dedos escorregam nas teclas do computador enquanto, pela primeira vez, se aventura a postar um texto seu no blog que ele acaba de inaugurar. Talvez não seja mesmo para entender. Talvez seja mesmo apenas para aproveitar mais uma maravilhosa primeira vez.

Sejam bem-vindos!